[Resenha] Cem Milagres

Título: Cem Milagres
Autora: Zuzana Rùzicková | EditoraGlobo Livros Páginas352 | Ano2020 
 Recebido em parceria com a Editora
 

Esta é uma emocionante história de injustiça, sofrimento e superação. As atrocidades da Segunda Guerra Mundial não foram capazes de destruir, no coração de Zuzana, o amor pela família e pela música, lenitivos em um mar de dor que a atormentou durante o mais severo período de sua vida. 

“Os sentimentos de má vontade contra nós se desenvolveram aos poucos. Alguns dos meus colegas e até algumas amigas eram pró-alemães ou passaram a me evitar por causa da estrela de seis pontas. Ou talvez simplesmente estivessem com medo. Muitos foram bons comigo, mas eu me lembro mais dos que foram ruins.” 

Cem Milagres é uma biografia não cronológica da vida de Zuzana Ruzickova, uma musicista tcheca, notável por gravar toda a obra de Johann Sebastian Bach num cravo (instrumento de cordas). 

Zuzana passou sua adolescência toda entre os guetos, para onde foram arrastados os judeus, e os campos de concentração. Viu de perto o monstro Menguele e toda ordem de tortura a que foram submetidos os povos não pertencentes a “raça” alemã. 

“Um policial chegou com a intimação que tínhamos que assinar, estabelecendo um prazo de doze horas para sairmos de nossas casas com todos os nossos pertences para sermos levados em caminhões para essas aldeias deser­tas.” 

 



Desde pequena apaixonada pela música, buscava em sua mente, nos momentos mais difíceis e austeros da guerra, relembrar as belas canções que aprendeu, tentando amenizar a dor física e do espírito que lhe foram impostas pela mais vil covardia que a humanidade permitiu. 

“Era verdade que os meus adoráveis dedos de menina tinham se fossilizado por enregelamento no terrível inverno de 1944-1945. As impressões digitais tinham sido praticamente desgastadas por bolhas que nunca cicatrizavam, e meus dedos foram deformados e retorcidos por meses de trabalho escravo.” 

Todas as memórias de Zuzana, complementadas por uma exemplar pesquisa da autora Wendy Holden, nos transportam para além do nosso tempo, para um lugar cinza e tenebroso que angustia o coração. É uma leitura difícil e emocionante, mas necessária. 

“Onze anos depois da guerra, ainda estávamos em choque com o que uma nação tão culta como a Alemanha havia feito ao permitir que os nazistas cometessem tantas atrocidades.” 

“Regredir a um nível tão bárbaro e fazê-lo de maneira tão eficiente foi algo que nos privou de verdadeira fé na humanidade.” 

 



Sua história é contada desde a infância, retratando a relação familiar e seu primeiro contato com a música. O pai sempre muito atento às suas necessidades e aptidões, respeitando suas decisões mesmo sendo uma criança. 

“Dos 5 mil no acampamento da família destinados a morrerem por gás iminentemente, mil homens e mil mulheres saudáveis seriam escolhidos para uma morte mais lenta pela guerra ou pelo trabalho escravo.” 

A mãe, forte e decidida, esteve com ela por todos os infernos a que foi obrigada a passar, na, talvez, mais difícil experiência que uma pessoa pode ser submetida nesse mundo. Companheiras em todas as dificuldades e perdas, enfim pôde ser testemunha de tempos melhores, mas, definitivamente longe de uma civilidade que baste para sustentar o devido respeito à vida. 

"­— Você é judia? — ela me perguntou um dia, ao ver o número no meu braço. — Eu não gosto de judeus.” 

Viktor virou-se para ela, furioso: 

— Por quê? Quantos você conhece? 

— Eu nunca conheci nenhum — ela respondeu sarcástica. — Mas sei tudo sobre eles.” 

A luta contra discriminação, racismo, tortura, guerra ou qualquer tipo de ação humana que tenha potencial degradante, que submeta qualquer um de nós a sofrimento arbitrário, deve fazer parte das nossas ações diárias. O debate deve ser aberto e verdadeiro em busca do entendimento e da pacificação. 

Zuzana nos mostra como o amor pode ser mais forte que qualquer ódio, e não é pelo fato dela ter sobrevivido, mas por ter encontrado forças para superar lembranças tão dolorosas e construir novamente uma família, apesar do egoísmo perdurar nas sociedades. 




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